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Irmã
Eu cobiço todos os homens que vejo na televisão, atores garbosos, metalúrgicos vigorosos, bombeiros que me fazem consultar o calendário todos os dias, policiais nus que passam multas, políticos com qualquer coisa no ânus, entrevistados que gaguejam, gajos que cospem na rua e aqueles que leem um livro no barco. Deus me acuda, ia para a cama com todos. Ah, os marinheiros com os cachimbos, barba e casaco. Eu cobiço um Corto Maltese só para mim.
[esqueletos vivem dentro de sonhos]

 

No início do século XVII, o poeta Ben Jonson inventou a palavra “dramaturgo” (em inglês, playwright) para insultar um poeta rival. Implicava Jonson que o seu rival era tão limitado do ponto de vista literário que apenas era capaz de estruturar peças para teatro e nada mais conseguia fazer com palavras.
Desde aí, a dramaturgia deu grandes reviravoltas, entre a aclamação e a rejeição absolutas, mas viveu sempre na hesitação entre ser uma obra literária completa e ser componente — ou peça — vital de um acontecimento cénico e performativo.
Essa tensão vive com clareza nestes textos para teatro de Ricardo Cabaça. O Ricardo é um artífice da palavra e sente-se que esta é o ponto de partida para o seu trabalho não só dramatúrgico como também cénico.
Os textos que se encontram neste No bico da Cegonha são “Esqueletos vivem dentro de sonhos”, “Fake news: Naked Fews” e as peças curtas “Ninguém morre ao domingo” e “Anti-Benjamin”.
Há claras afinidades entre “Esqueletos vivem dentro de sonhos”, “Ninguém morre ao domingo” e “Anti-Benjamin”. Nelas notamos aquilo que são as marcas mais recorrentes da dramaturgia do Ricardo: o desdém pelo naturalismo, a busca da expressão justa para cada momento, para cada situação, para cada personagem, que pode ir da obscenidade à poesia, da referência erudita à última trend. 

Já “Fake news: Naked fews” distingue-se claramente das outras peças não só pelo seu pendor mais cénico, com alguma interação com o público, como pelo estilo mais ensaístico que, como em muito do teatro que se faz hoje, se arriscam respostas à atualidade. Neste caso, às chamadas “fake news”, ou notícias falsas. Fake news foi um termo que surgiu em anos recentes para exprimir a angústia dos mass media em descobrirem que não eram a única fonte de verdade social. Rumores, falsidades, mentiras, supostas verdades são algo que sempre existiu nas comunidades humanas, e tanto estiveram na origem das matanças de judeus como na Revolução Francesa. A diferença é que o digital achatou os meios de comunicação, colocou notícias confirmadas lado a lado com as mais delirantes teorias da conspiração, como se não houvesse qualquer diferença entre elas. Por via disso, as fake news foram culpabilizadas de todos os males recentes, desde eleições populistas a negacionismo da pandemia, etc. Não sabemos se as fake news alguma vez acabarão ou que impacto terão na nossa sociedade, mas o Ricardo dá-lhes uma resposta tão surpreendente como audaciosa, na senda de correntes filosóficas como o construtivismo e o pragmatismo: a de que a verdade não é um valor absoluto, mas está sempre ao serviço de um bem social maior.
Apesar das inevitáveis variações, em todas estas peças, sentimos a presença confiante e livre do Ricardo, que não tem medo de se assumir como autor nestes textos, a espreitar atrás de cada personagem e de cada fala, sem precisar de chamar a atenção do público de que elas têm um autor. E mais do que para um dramaturgo, as palavras que compõem este livro apontam para que o Ricardo Cabaça é principalmente um escritor, que escolheu a forma teatral — com tudo aquilo que esta tem de frágil, efémero, vacilante — para ser a sua forma de expressão literária de eleição.

jorge palinhos
dramaturgo, investigador e professor universitário

 

Ricardo Cabaça é licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Publicou as peças O primeiro quarto, revista Bypass Ed. 2, Morte súbita, Revista Galega de Teatro Ed. 78 (Espanha), Stop Motion para Eadweard, editora Edições Húmus, Albert Cossery ou Uma palavra para o dia chegar ao fim, Revista Ensaia (Brasil), Storni-Quiroga, Editora Licorne, Depois da última página e Náufragos, ambas pela na editora Adab, Gaia, Corpo futuro e Dix, as três pela Edições Primata (Brasil), e Albert Cossery ou Uma palavra para o dia chegar ao fim, editora não (edições).
Participou no Seminário Internacional de Dramaturgia de 2015 (Obrador d’Estiu) em Barcelona, na Sala Beckett, com Simon Stephens. Em 2016 foi o dramaturgo português convidado para a residência artística do Chantiers d’Europe, no Théâtre de la Ville, em Paris, França. A peça Os náufragos foi lida pelo elenco do Théâtre de la Ville.
Participou no IX Seminário Internacional de Dramaturgia Amazônida (Pará, Brasil) em 2019 como palestrante e com uma oficina de dramaturgia.
Desenvolveu e apresentou, em parceria com a DramaturgA e o Centro Dramático Galego, o projeto DraMITurgA na MIT Ribadavia Mostra Internacional de Teatro de Ribadavia, em julho 2021.
Participou no Festival de Peças de um Porvir (Galiza) com a peça Anti-Benjamin (2020).
Os seus textos foram encenados em Portugal, Brasil, Espanha, Angola e França.
É cofundador e codiretor artístico da 33 Ânimos, juntamente com Daniela Rosado, desde a fundação do grupo em 2012.

 

Detalhes do produto

  • Editora ‏ : ‎ Editora Urutau; 1ª edição (2022)
  • Idioma ‏ : ‎ Português
  • Capa comum ‏ : ‎ 142 páginas
  • Isbn: 978-65-5900-210-8
  • Dimensões ‏ : ‎12,5x16 cm

No bico da cegonha - Ricardo Cabaça

SKU: 9786559002108
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