ANA
Há lugares assim.
JOSÉ
Assim como?
ANA
Estão sempre na mesma, mas nós vemo-los de maneira diferente.
(Apeadeiro sul, página 12)
Depois da fonte, houve sempre um portal que me levava para a cidade, para os treinos, para a escola. “Este comboio efetua paragens em todas… excepto…”. A Isabel é feita deste material: cargas, passageiros, vidas cheias, a abarrotar histórias do interior mais naive, transportadas até à grande metrópole da vida adulta e ao banco do jardim no parque da velhice.
Ler a Isabel é observar um quadro a ser pintado; desde o primeiro traço, desenrola-se num alguém e num lugar que temos cá para dentro. Lembra até uma conversa que tive naquele dia ou no outro ano, quando fiz aquilo ou disse ao outro.
O Apeadeiro Sul é o corpo numa, duas ou mil miragens desenhadas a carvão, esboços do lápis mordiscado que perduram só no após, a fria espera, o abraço amadeirado, hemorragias internas da perda e a vontade de mandar tudo às urtigas. Até que de repente cheira a café outra vez. É um lugar de abrigo, escape e de inevitáveis despedidas. Raios as partam. Um apeadeiro guarda todos os segredos: está cheio de fugas e esconderijos para lá do banco de espera. Lugar predilecto dos que apanham o das duas em dias de escola para ir namorar às escondidas. Aqui nunca se está aborrecido: enquanto o regional não chega, passam os rápidos— dão um abanão valente —, observamos os pássaros que pousam no toldo onde nos abrigamos em dias invernosos à espera do das sete. Se estivermos sozinhos, ouvimos das valas a água escassa e damos especial atenção aos avisos. De repente, reparamos que agora põem mais vezes aquele aviso sobre a distância da plataforma desde que um homem morreu esmagado. Se estivermos acompanhados, reclamamos dos atrasos e das greves constantes, ouvimos as conversas agora audíveis dos vizinhos que erram sempre no meu nome. Partimo-nos em dois cada vez que pisamos um apeadeiro, ora deixamos um outro ou um eu: pura melancolia, abandono apaixonado, horas por preencher, horas preenchidas, vidas abençoadas e almas amaldiçoadas que pensamos conhecer. O fascínio de ver os comboios a chegar várias vezes ao dia é impagável. Aquilo somos nós.Rodolfo Freitas
Isabel Milhanas Machado nasceu em Lisboa, Portugal, em 1992. Vive e trabalha entre Lisboa e Mértola. É formada pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Teatro — Artes Performativas pela Escola Superior de Teatro e Cinema. Trabalha na área da cultura desde 2013, como mediadora cultural e produtora de espetáculos. Escreve teatro e poesia, tendo publicado as peças Robes, Os Ratos e Apeadeiro Sul. Obteve por duas vezes um reconhecimento para novos dramaturgos pela AELG, tendo levado a cena a peça Declaração de amor em 2022. Nesse ano, publica Azul e verde, um livro de poemas com desenhos de Rafaela Nunes. Fundou em parceria as estruturas artísticas Casa Mãe (2013) e Coletivo Câmara (2018), no qual assume funções artísticas e administrativas. Ao longo de 2021, produziu com o Coletivo Casa Mãe o ciclo de leituras online Está tudo bem. Em 2023 participa na coletânea Contos pouco exemplares e inicia o ciclo de leituras e performance Do pé prá mão com o Coletivo Câmara. Atualmente, é doutoranda em Artes Performativas e da Imagem em Movimento e coordena um espaço cultural em Lisboa.
Detalhes do produto
- Editora : Editora Urutau; 1ª edição (2022)
- Idioma : Português
- Capa comum : 52 páginas
- Isbn: 978-65-5900-209-2
- Dimensões : 12,5x16 cm
Apeadeiro sul - Isabel Milhanas Machado
- Até 5 dias úteis.