O que lhe podem cortar, quando lhe tiram tudo? O testemunho de Firdaus.
Aqui não se trata de meras metáforas. Nawal El Saadawi, médica, psiquiatra e ativista que passou pela prisão política no Egito, coloca-nos diante de Firdaus. Uma mulher que espera a execução e que, antes de silenciar para sempre, exige o direito à sua última palavra: "Deixe-me falar. Não me interrompa. Não tenho tempo para ouvir você".
E então desfia, sem piedade, a costura brutal do seu destino: a mutilação genital na infância, a violação familiar, o casamento forçado, a violência doméstica, a prostituição. Cada episódio, uma camada retirada à força, um pedaço da sua humanidade amputado. A mutilação, ela descreve, não é um acontecimento pontual, mas uma ausência que cresce com ela: “Eu podia sentir isso em algum lugar, como uma parte do meu ser que havia nascido comigo... mas não havia crescido comigo”. É a parábola perfeita da mulher sob o patriarcado: nascer completa e ser desmontada, peça a peça, pela sociedade.
O que torna esta narrativa — baseada num relato verídico — um "implacável desafio à nossa sociedade" é a sua recusa absoluta do vitimismo. A prisão de Firdaus não começa entre as grades. A sua cadeia é o mundo. E a sua única fuga, o seu único ato de soberania possível, é também o crime que a condena: matar um dos seus agressores. Este é o paradoxo obsceno e libertador no centro do livro: por vezes, a única forma de se reclamar como sujeito é através de um ato que a sociedade condena como monstruoso. Aqui, a tragédia não é o crime, mas a condição que o torna a única saída viável.
Chamar a isto um "romance" parece pouco. É um testemunho forense, uma disseção da máquina social que produz mulheres sacrificáveis. Saadawi, frequentemente chamada de "a Simone de Beauvoir do mundo árabe", não escreve sobre o Egito para um leitor distante. Escreve sobre o sistema global que, em maior ou menor grau, ensina aos homens "o acesso irrestrito ao corpo de uma mulher". A história de Firdaus é universal porque a lógica da opressão que ela expõe não conhece fronteiras.
O despertar feminista, anunciado no subtítulo, não é um momento de iluminação serena. É um acordar em chamas. É a fúria fria de quem, ao perceber que tudo lhe foi roubado, decide que pelo menos o seu silêncio ninguém mais comprará. Ler este livro é ouvir essa voz. É um incómodo necessário. Uma das obras "mais francas e radicais sobre a vida feminina", como atestou The Guardian. E, como toda a obra de Nawal El Saadawi, um ato de coragem que nos convida, a nós leitores, a ter um pouco da dela.
Detalhes do produto
- Editora : Faro;
- 1ª edição (20 março 2019)
- Idioma : Português do Brasil
- Capa comum : 160 páginas
- ISBN-13 : 9788595810600
- Dimensões : 22.61 x 15.75 x 1.52 cm
A Mulher com Olhos de Fogo. O Despertar Feminista - Nawal El Saadawi
Até 5 dias úteis.


































